quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O que aprendi com Caim e Abel

          É significativo que a narrativa bíblica passe o foco do primeiro casal para os dois irmãos. Há comentaristas que vêem aqui, já, um protótipo da divisão da humanidade entre os adoradores do Senhor e os ímpios, iníquos.
          O foco da narrativa centra-se no evento do sacrifício e, embora algumas pessoas vejam um significado redentivo (no fato de que a oferta de Abel era de sangue e a de Caim não era) não há base textual para supor assim. o foco está no coração dos adoradores. Foi realizada uma oferta a Deus, por cada um dos dois, com base no que tinham, segundo o seu coração. O diretor John Huston no filme "A Bíblia: o começo" (The Bible: the beginning, 1966) retrata de forma muito criativa esta cena ao mostrar como Caim reconsidera o quanto está ofertando e retoma uma certa quantia da dádiva.
          Bem, a Bíblia é muito clara em diversos locais: os olhos do Senhor estão atentos para aquele que é humilde e de coração contrito (conf. Is 57:15, Sl 51:17, 1 Pe 3:12). A atitude de Abel é aquela que o Senhor ansiava por ver em um adorador e Ele se alegrou e teve prazer na oferta de Abel. O problema é que, como Paulo demonstra muito bem, um bom testemunho tem uma função dupla (2 Co 2:15-16); aroma de vida para os que se salvam e cheiro de morte para os que se perdem.
          Caim teve desgosto com Deus. O Senhor já lhe conhecia o coração e sabia que as coisas não iam bem. A recusa da oferta de Caim não foi a recusa de uma formalidade, foi a recusa da essência, do interior, do coração mesmo (Mt 5:23-24). A inveja que o levou a descarregar ira sobre seu irmão "certinho" foi apenas a manifestação do descontentamento com Deus lançado em alguém mais fraco, visto que ele não podia combater com o Senhor. Agora o exterior de Caim revelava clara e abertamente o que ia em seu íntimo.

          Quantas vezes eu não descarrego em outras pessoas o meu descontentamento com Deus? Ainda mais hoje, em dias de teologias de prosperidade?  Quantos de nós somos como Jó, submissos a aceitar tanto o bem como o mal das mãos do Senhor? (cf. Jó 2:9-10).

          O que mais me toca, quando leio esse relato, é o fato de que Deus busca a Caim. Vai atrás dele e revela que o conhece no íntimo, que sabe seus sentimentos e emoções. Ora o Senhor nos clama e adverte a todo momento: "Dá-me, filho meu, o teu coração, e os teus olhos se agradem dos Meus caminhos" (Pv 23:26). Deus faz uma promessa: se procederes bem, não é certo que serás aceito? Aqui não podemos ver autorização para uma espiritualidade ética apenas, nem brechas para uma salvação por méritos baseados em boas obras. a mensagem é clara. fazer o certo molda a vontade tando quanto a vontade reta determina a fazer o certo. um cristão deve ser reto porque é o certo. Gosto de uma mensagem do Pr. Tim Conway que nos faz refletir sobre o fato de vivermos buscando uma moralidade mínima, sempre perguntando até onde podemos ir próximos do pecado e ainda dizer que somos crentes. Curiosamente ele termina com um apelo contundente: quer ser mundano? volte para o mundo!
          A advertência que o Senhor faz a Caim é muito esclarecedora: Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo (Gn 4:7b). Muitos comentaristas vêem aqui a figura de um pequeno demônio, ou uma fera, na soleira da porta, prestes a atacar a pessoa que sai - o hebraico permite essa leitura. Isso remete ao que Pedro disse a respeito de Satanás, que "anda em derredor, bramando como leão, buscando a quem possa devorar ( 1 Pe 5:8) e conclama os crentes à vigilância e sobriedade.  
          Aqui já há espaço suficiente para uma reflexão muito profunda: Ser tentado não é pecado. Mas ser tentado mostra, diretamente, como o meu coração é mau e impuro, pois sou tentado conforme minhas próprias concupiscências (maus desejos, cobiças) Tg 1:14. Deus estabelece os termos da batalha: o seu desejo (da tentação ao pecado) será contra ti - mas a ti cumpre dominá-lo.
          Não sou salvo, em Cristo, para viver como eu quero, para ter o que eu quero, para que tudo seja como eu quero. Pelo contrário, ser salvo em Cristo implica em passar por um longo e doloroso processo de luta constante contra as minhas vontades pessoais: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me (Mt 16:24). Lucas (9:23) ainda adiciona, negue-se dia a dia. Como bons influenciados pela religião romana temos o hábito de pensar muito na cruz pessoal como problemas, dificuldades da vida, principalmente externas ao nosso coração-mente (pobreza, um cônjuge ruim, um filho rebelde, um emprego difícil, um desapontamento, uma deficiência física ou uma doença, por exemplo). Creio que o principal enfoque da cruz, dado por aquele que sabia que deveria se negar em nosso favor (deixou o céu por nós), é a negação do EU, que hoje é tão entronizado na religião humanista existencialista atual. Eu devo morrer, nas minhas vontades e paixões, para que possa ser salvo. Esse é o sentido maior de "quem perder a vida por minha causa, achá-la-á
          Bem, negar o EU não é coisa fácil. Nem todos somos como Caim que resolveu a sua ira contra a soberania divina matando os Abéis que nos incomodam. Ao menos não fisicamente. O que resulta, quando não negamos o Eu é o que podemos ver hoje. Formas espúrias de adoração que contentam o ego do homem mas não dão prazer a Deus. Vidas cristãs que tem força nos lábios mas não tem poder no testemuho da fé. Massas que se dizem convertidas, mas pouca transformação no mundo.
          Ao nos postarmos como adoradores devemor refletir profundamente quem deve ser adorado. O Deus soberano, Senhor dos céus e da terra ou eu, homem finito e impotente. Se escolhermos a segunda opção só nos caberá andarmos errantes pela terra.

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